segunda-feira, 28 de junho de 2010

António Gedeão : Aurora Boreal




" Tenho quarenta janelas


nas paredes do meu quarto .


Sem vidros nem bambinelas


posso ver através delas


o mundo em que me reparto .


Por uma entra a luz do Sol ,


por outra a luz do luar ,


por outra a luz das estrelas


que andam no céu a rolar .


Por esta entra a Via Láctea


como um vapor de algodão ,


por aquela a luz dos homens ,


pela outra a escuridão .


Pela maior entra o espanto ,


pela menor a certeza ,


pela da frente a beleza


que inunda de canto a canto .


Pela quadrada entra a esperança


de quatro lados iguais ,


quatro arestas , quatro vértices ,


quatro pontos cardeais .


Pela redonda entra o sonho ,


que as vigias são redondas


e o sonho afaga e embala


à semelhança das ondas .


Por além entra a tristeza ,


por aquela entra a saudade


e o desejo , e a humildade ,


e o silêncio , e a surpresa ,


e o amor dos homens , e o tédio ,


e o medo , e a melancolia ,


e essa fonte sem remédio


a que se chama poesia ,


e a inocência , e a bondade ,


e a dor própria , e a dor alheia ,


e a paixão que se incendeia ,


e a viuvez e a piedade ,


e o grande pássaro branco ,


e o grande pássaro negro


que se olham obliquamente ,


arrepiados de medo ,


todos os risos e choros ,


todas as fomes e sedes ,


tudo alonga a sua sombra


nas minhas quatro paredes .





Oh janelas do meu quarto ,


quem vos pudesse rasgar !


Com tanta janela aberta


falta-me a luz e o ar ."







in , " Teatro do Mundo " , 1958


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