sábado, 31 de julho de 2010

Guardar : Antonio Cícero



" Guardar uma coisa não é escondê-la ou

trancá-la .

Em cofre não se guarda coisa alguma .

Em cofre perde-se a coisa à vista .

Guardar uma coisa é olhá-la , fitá-la ,

mirá-la por admirá-la , isto é ,

iluminá-la ou ser por ela iluminado .

Guardar uma coisa é vigiá-la , isto é ,

fazer vigília por ela , isto é , velar por

ela , isto é , estar acordado por ela ,

isto é , estar por ela ou ser por ela .

Por isso , melhor se guardar o vôo de um pássaro

Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve , por isso se diz , por isso

se publica , por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo :

Para que ele , por sua vez , guarde o que guarda :

Guarde o que quer que guarda um poema :

Por isso o lance do poema :

Por guardar-se o que se quer guardar ."

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pensamento do dia



" Ouça um bom conselho

Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa "...


Chico Buarque , in " Bom conselho " /1972

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Os amantes



" Estranho sim .

As pessoas ficam desconfiadas ,

ambíguas diante dos apaixonados .

Aproximam-se deles , dizem coisas amáveis ,

mas guardam certa distância ,

não invadem o casulo imantado que envolve

os amantes e que pode explodir

como um terreno minado , muita cautela ao pisar

neste terreno .

Com sua disciplina indisciplinada , os amantes

são seres diferentes e o ser diferente é

excluído porque vira desafio , ameaça .

Se o amor na sua doação absoluta os faz mais

frágeis , ao mesmo tempo os protege como uma

armadura .

Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso ,

provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem ."


Lygia Fagundes Telles ,in , " A Disciplina do Amor " ,

Nova Fronteira ,1980

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poesia , sempre ...


Miguel Torga : Livro de Horas

" Aqui diante de mim ,

eu , pecador , me confesso

de ser assim como sou .

Me confesso o bom e o mau

que vão ao leme da nau

nesta deriva em que vou .


Me confesso

possesso

das virtudes teologais,

que são três ,

e dos pecados mortais ,


que são sete ,

quando a terra não repete

que são mais.


Me confesso

o dono das minhas horas .

O das facadas cegas e raivosas ,

e o das ternuras lúcidas e mansas .


E de ser de qualquer modo

andanças

do mesmo todo .


Me confesso de ser charco

e luar de charco , à mistura.

De ser a corda do arco

que atira setas acima

e abaixo da minha altura.


Me confesso de ser tudo

que possa nascer em mim .

De ter raízes no chão

desta minha condição .

Me confesso de Abel e de Caim .


Me confesso de ser Homem.

De ser um anjo caído

do tal céu que Deus governa;

de ser um monstro saído

do buraco mais fundo da caverna.


Me confesso de ser eu .


Eu , tal e qual como vim

para dizer que sou eu

aqui , diante de mim ! "

terça-feira, 27 de julho de 2010

É preciso parar : Clarice Lispector


" Estou com saudade de mim . Ando pouco recolhida,

atendendo demais ao telefone , escrevo depressa ,

vivo depressa . Onde está eu ?

Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim

- enfim , mas que medo - de mim mesma ."



in , Clarice Lispector ," Aprendendo a Viver "

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Canção do dia de sempre : Mario Quintana


" Tão bom viver dia a dia ...
A vida assim , jamais cansa ...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu

E só ganhar , toda a vida ,
Inexperiência , esperança ...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu .

Nunca dês um nome a um rio :
Sempre é outro rio a passar .

Nada jamais continua ,
Tudo vai recomeçar !

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas ,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas ..."

domingo, 25 de julho de 2010

O Sonho : Sebastião da Gama



" Pelo sonho é que vamos ,

Comovidos e mudos .

Chegamos ? Não chegamos ?

Haja ou não frutos ,

pelo sonho é que vamos .


Basta a fé no que temos .

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.

Basta que a alma demos ,

com a mesma alegria ,

ao que desconhecemos ,

e ao que é do dia-a-dia .


Chegamos ? Não chegamos ?

-Partimos . Vamos . Somos ."

sábado, 24 de julho de 2010

Tomar a peito o sofrimento alheio



" A bondade de coração , diz Schopenhauer ,

consiste profundamente numa sentida e universal

compaixão para com tudo quanto possui vida ,

mas em primeiro lugar para com o ser humano .

Com-paixão - como sugere a filologia da palavra -

é a capacidade de com- partilhar a própria paixão ,

com a paixão do outro .

Trata-se de sair de si mesmo e de seu próprio círculo

e entrar no universo do outro enquanto outro ,

para sofrer com ele , para cuidar dele ,

para alegrar-se com ele e caminhar junto a ele ,

e para construir uma vida em sinergia e solidariedade. "



in , Leonardo Boff , " Princípio de Compaixão e Cuidado "
3ª ed ,2001 -Editora Vozes

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Lua Adversa : Cecília Meireles



" Tenho fases , como a lua

Fases de andar escondida ,

fases de vir para a rua ...

Perdição da minha vida !

Perdição da vida minha !

Tenho fases de ser tua ,

tenho outras de ser sozinha ,


Fases que vão e que vêm ,

no secreto calendário

que um astrólogo arbitrário

inventou para meu uso .

E roda a melancolia


seu interminável fuso !


Não me encontro com ninguém

( tenho fases , como a lua )

No dia de alguém ser meu

não é dia de eu ser sua ...

E , quando chega esse dia ,

o outro desapareceu ... "


in , " Os Melhores Poemas de
Cecília Meireles / seleção de
Maria Fernanda ( uma das filhas
de Cecília ) 14 ª ed. S.Paulo : Global 2002

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Paulo Leminski



" Vim pelo caminho difícil ,

a linha que nunca termina ,

a linha bate na pedra ,

a palavra quebra uma esquina ,

mínima linha vazia ,

a linha , uma vida inteira ,

palavra , palavra minha ."




in , " Melhores poemas de Paulo Leminski /

seleção Fred Góes e Álvaro Marins , 6ª ed.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Rosane Coelho : Sem cerimônia


" qualquer dia

chegas de vez ...

instala-te sem com licença ,


por favor , muito obrigado ...



espreme minhas roupas no armário ,

enfia-te sob os lençóis ,

afunda o travesseiro ao lado .

dispensa promessas formais ,



sem pra sempre

ou nunca mais .


apossa-te de meus anseios ,


direto aos fins ,


sem entremeios ."




O texto da Rosane Coelho é sempre brilhante ,
seja nas poesias , poetrix , haicais e crônicas .
Apreciem seu trabalho no site :
www.rosanecoelho.prosaeverso.net

terça-feira, 20 de julho de 2010

Ah ! Os amigos : Rachel de Queiroz


Fragmento da crônica


"Sim , amigo é coisa muito séria .


Acho que a gente pode viver sem emprego , sem dinheiro ,


sem saúde e até sem amor , mas sem amigos nunca.


Pois o amigo é capaz inclusive de suprir discretamente


essas faltas e lhe conseguir trabalho ,


lhe emprestar dinheiro , lhe tratar na doença .


Amigo entende , agüenta , perdoa ,


" Amigo é pra essas coisas" ,como diz aquela


cantiga tão bonita .


Dizem que depois da morte , no outro mundo ,


as almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo ,


naquela quintessência de excelências


que só o céu pode dar ."



Hoje , dia do amigo , fui almoçar com a Suely Braga .


Foi muito bom e a alegria rolou solta ...



Esta página é em homenagem aos meus amigos ,
companheiros na viagem da vida .
Abraço e beijo todos ,com carinho .
Obrigada .






segunda-feira, 19 de julho de 2010

Jorge Luis Borges : O mar



" Antes que o sonho ( ou o terror ) tecesse

mitologias e cosmogonias ,

antes que o tempo se cunhasse em dias ,

o mar , o sempre mar , já estava e era .


Quem é o mar ? Quem é o violento

e antigo ser que corrói os pilares

da Terra e é um mar e muitos outros

e abismo e resplendor e acaso e vento ?

Quem o olha o vê pela primeira

vez , sempre . Com o assombro que as coisas

elementares deixam , as formosas

tardes , a lua , o fogo , uma fogueira .


Quem é o mar , quem sou ? Só saberei

no dia ulterior ao da agonia ."


in , Jorge Luis Borges , " O outro , o mesmo ."

domingo, 18 de julho de 2010

Castro Alves : O livro e a América



Fragmento do poema

(...)

" Oh ! Bendito o que semeia

Livros ... livros à mão cheia ...

E manda o povo pensar !

O livro caindo n'alma

É germe - que faz a palma ,

É chuva - que faz o mar ."

sábado, 17 de julho de 2010

A Alegria : Fernando Savater



" Agora vem a pergunta milionária :

qual é a maior gratificação que uma coisa

pode nos dar na vida ?

Qual é a recompensa mais alta que podemos

obter de um esforço ,uma carícia , uma palavra ,

uma música , um conhecimento,uma máquina ,

ou de montanhas de dinheiro,do prestígio ,

da glória , do poder , do amor , da ética ou de seja

lá o que for ?

Já vou avisando que a resposta é tão simples

que talvez o decepcione :

o máximo que podemos obter de seja lá o que for

é a alegria .

Tudo o que leva à alegria se justifica ( pelo menos

de um ponto de vista , embora não seja absoluto )

e tudo o que nos afasta irremediavelmente da alegria

é um caminho equivocado .

O que é a alegria ?

Um " sim" espontâneo à vida que brota dentro de nós ,

às vezes quando menos esperamos .

Um " sim" ao que somos , ou melhor ,

ao que sentimos ser .

Quem tem alegria já recebeu o prêmio máximo

e não carece de nada ;

quem não tem alegria - por mais sábio, bonito,

sadio ,rico , poderoso , santo , etc, que seja -

é um miserável que carece do mais importante ."



in , Fernando Savater , " Ética para Meu Filho " .


sexta-feira, 16 de julho de 2010

Virgen del Carmen


Dia 16 de julho , comemora-se na Espanha , o dia da

Virgen del Carmen , padroeira dos pescadores e dos

marinheiros.

Praticamente todas as cidades da costa espanhola

rendem culto religioso, organizando procissões e

romarias marítmas levando sua imagem .

Há 07 anos , nesta data ,fazendo um curso em Málaga,

cidade da Andaluzia , na costa sul da Espanha ,

pude acompanhar de perto esta bonita festa .

Os participantes , seja nas ruas , seja na praia,

todos muito alegres e com rosas nas mãos ,

tentam nos mostrar a analogia existente no nome

da Virgen del Carmen , conhecida como

estrela dos mares ou stella maris .

Assim , nos revelam , que , os marinheiros ,

antes da era eletrônica,dependiam das estrelas

para marcar seu rumo , no imenso oceano .

Era a Virgen del Carmen os guiando .

Também ela , guia todos nós como uma estrela,

nas águas difíceis de nossa vida , rumo ao porto seguro

que é seu filho, Jesus Cristo .




Deixo , nesta página , grande beijo aos professores espanhóis ,
Demian e Isabel , e , um , especial , pra minha amiga,
de sempre, e , companheira nesta viagem à Málaga ,
Suely Braga.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Retrato de Mulher Triste


" Vestiu-se para um baile que não há.

Sentou-se com suas últimas jóias .

E olha para o lado , imóvel .



Está vendo os salões que se acabaram ,

embala-se em valsas que não dançou ,

levemente sorri para um homem .

O homem que não existiu
.



Se alguém lhe disser que sonha ,

levantará com desdém o arco das sobrancelhas,

Pois jamais se viveu com tanta plenitude .



Mas para falar de sua vida

tem de abaixar as quase infantis pestanas ,

e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas .



Cecília Meireles , in " Poemas ( 1942-1959) "

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Orfandade : Adélia Prado


" Meu Deus ,

me dê cinco anos .

Me dê um pé de fedegoso com formiga preta,

me dê o Natal e sua véspera,

o ressonar das pessoas no quartinho .

Me dê a negrinha Fia pra eu brincar,

me dê uma noite pra eu dormir com minha mãe.

Me dê minha mãe , alegria sã e medo remediável,

me dá a mão , me cura de ser grande .

Ó meu Deus , meu pai ,

meu pai ."

terça-feira, 13 de julho de 2010

Rubem Alves : Os moradores do albergue




Trecho da crônica

( ...)


" Fernando Pessoa era um exemplo vivo de albergue

onde moravam os mais variados personagens ,

mais de trinta ,chamados heterônimos, cada um

deles com biografia própria,filosofia distinta ,

estilo peculiar e sentimentos específicos:

Alberto Caeiro não pensa , não sente e não escreve

como Ricardo Reis , que não pensa , não sente e

não escreve como Álvaro de Campos , que não pensa ,

não sente e não escreve como Bernardo Soares -

e assim por diante .Não se trata de pseudônimos .

Pseudônimo é uma máscara que um escritor pode usar

para se esconder ou se identificar .

O caso de Fernando Pessoa era outro :

ele era literal e literariamente

" possuído " pelos heterônimos .

Sua identidade civil era definida por sua carteira

de identidade: um único indivíduo, Fernando Pessoa.

Mas nesse corpo de um nome só moravam muitos

e diferentes outros que se alternavam .

Ele chegou a confessar :

" Meu coração é um albergue ."

Tenho estado tentando fazer um inventário

das muitas entidades que podem morar no corpo .

Há moradores de todo o tipo e - o curioso é

que o corpo não faz uma investigação das

credenciais do pretendente a albergado ,

antes de aceitá-lo como morador .

Eis alguns deles : o depressivo , de

poucas palavras ; o alegrinho falador ,

insuportável; o sargento que gosta de dar

ordens ; a bruxa horrenda de voz gritada;

o torturador sádico ; o filósofo sábio ;

o místico ; o romântido apaixonado ;

o invejoso, verde; o ciumento; o mal humorado,

que acha tudo ruim ; o carrasco; o rancoroso ,

que se compraz em esgravatar o passado ;

o canalha; o moralista ; a perua ; o velho ;

a criança ... A lista não tem fim .

Com a ajuda do seu analista você poderá

fazer um inventário dos tipos que moram no

seu albergue , a fim de compreender as

confusões que acontecem no seu corpo ."

( ...)


in , Rubem Alves , " O amor que acende a lua "

segunda-feira, 12 de julho de 2010

" Meu coração é um albergue"


Trecho do poema " Acordar " de
Fernando Pessoa , sob o heterônimo
Álvaro de Campos

( ...)

" Eu adoro todas as coisas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite .

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito .

Amo tudo , animo tudo , empresto humanidade a tudo .

Aos homens e às pedras , às almas e às máquinas ,

Para aumentar com isso a minha personalidade .

Pertenço a tudo para pertencer mais a mim próprio

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança que a ama beija .

Eu amo todas as coisas , umas mais do que as outras ,

Não nenhuma mais do que a outra , mas sempre mais as

que estou vendo

Do que as que vi ou verei ."

( ...)

domingo, 11 de julho de 2010

Canção de um longo amor : Lya Luft



" Tão sutilmente em tantos longos anos

foram se trocando sobre os muros mais que

desigualdades , semelhanças , que aos poucos

dois são um , sem que no entanto deixem

de ser plurais ;


talvez as asas de um só anjo , inseparáveis .

Presença e solidão foram tecendo a vida :


o filho que se faz , uma árvore plantada ,

o tempo gotejando do telhado ,

o tédio que ronda e não se instala .


Vontade de partir e de ficar ,

beleza reinventada a cada hora para não baixar

o pó do cotidiano desencanto .

Tão fielmente adaptam-se almas destes corpos ,


que uma em outra pode se trocar ,

sem que alguém de fora o percebesse nunca ."


in , " Secreta mirada e outros poemas "

Esta página é dedicada aos meus pais ,


Daniel e Cecília ,

que no dia 11 de abril , próximo passado ,

completaram 60 anos de casamento .


Parabéns !!!



sábado, 10 de julho de 2010

Canção do Caleidoscópio : Lya Luft



" Quem nos quiser amar agora ,

terá de vir com calma ,

terá de vir com jeito .

Somos um território protegido por muros de receio .

Quem quiser vir agora terá de ter paciência .

Terá de ter sabedoria .

Mas ainda que não tenha nada disso ,

virá e vai nos invadir ,

e vai nos desarrumar ,

e vamos renascer

com este desconserto .

Pois estávamos fora da realidade , fora do mundo ,

fora de nós .

A aventura do amor nos devolve a nós mesmos."



Canção do Caleidoscópio



" Quando achei que era tempo de sossego ,

jorraste nas minhas veias

como um vento sagrado , um mar perdido .

Quando esperei que tudo tivesse sido

vivido , sofrido e chorado ,

amadureceu esta fruta em meu deserto .

Quando pensei chegar no fim

de todos os corredores ,

esta porta se abriu :

sei que estás ali a desenhar paisagens novas ,

plantar árvores e deitar rios

onde eu imaginava haver sabedoria

e um corpo apaziguado ,

nada mais ."


in , " Secreta mirada e outros poemas "

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Lya Luft e suas canções ...


No livro " Secreta mirada e outros poemas " ,

Lya Luft nos diz :

" Intercalei entre os poemas pequenos trechos

em prosa , só porque este jogo me agrada ."



Canção da Alheia Primavera

" Algo se aproxima , alguma coisa nova

no pedaço de caminho que vemos pela

frente começa a nos intrigar .

Saímos do casulo em que andamos enfiados,

botamos a cabeça fora para enxergar melhor,

mas pode ser apenas uma fantasia .

Alguém - ou alguma coisa -

pronuncia o nosso nome .

A alegria pode ser uma ameaça ,

e a gente se esconde outra vez

com medo de ter-se enganado.

Para que arriscar uma nova perda ,

um novo machucado onde as velhas feridas

não sararam direito ?

Melhor voltar a dormir . "



Poema :


Canção da Alheia Primavera



" Talvez se agite um braço me chamando :


mas tão longe , nem se move


as névoas da ausência .


Quando achei que era tempo , não era


quando apanhei a estrela , passava


um vaga-lume qualquer entre meus dedos .



Talvez desça um navio me procurando


mas não quero viagens:

sou um pálido coral numa água morna ,


e vagamente aflora um movimento


- mas pode ser a sombra do meu sono .



Talvez haja um amor me inventando,


mas tão vago , nem roça


as beiras da minha praia : concha breve


e encolhida , não vou desenrolar


o meu abraço .

Quando achei que era tempo , não era :


talvez este ondular entre meus ramos


venha de uma alheia primavera ."

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Chico Buarque : Roda-viva


O que dizer do Chico ?

" Tem dias que a gente se sente


Como quem partiu ou morreu


A gente estancou de repente


Ou foi o mundo então que cresceu


A gente quer ter voz ativa


No nosso destino mandar


Mais eis que chega a roda-viva


E carrega o destino pra lá


Roda mundo , roda-gigante


Rodamoinho , roda pião


O tempo rodou num instante


Nas voltas do meu coração


A gente vai contra a corrente


Até não poder resistir


Na volta do barco é que sente


O quanto deixou de cumprir


Faz tempo que a gente cultiva


A mais linda roseira que há


Mais eis que chega a roda-viva


E carrega a roseira pra lá


Roda mundo ( etc.)



A roda da saia , a mulata


Não quer mais rodar , não senhor


Não posso fazer serenata


A roda de samba acabou


A gente toma a iniciativa


Viola na rua , a cantar


Mas eis que chega a roda-viva


E carrega a viola pra lá


Roda mundo ( etc.)


O samba , a viola , a roseira


Um dia a fogueira queimou


Foi tudo ilusão passageira


Que a brisa primeira levou


No peito a saudade cativa


Faz força pro tempo parar


Mas eis que chega a roda-viva


E carrega a saudade pra lá


Roda mundo ( etc.) "



Roda-viva, Chico Buarque ( 1967)


Para a peça Roda-viva , de Chico Buarque




quarta-feira, 7 de julho de 2010

David Mourão-Ferreira : Escada sem corrimão


" É uma escada em caracol

E que não tem corrimão

Vai a caminho do sol

Mas nunca passa do chão .



Os degraus , quanto mais altos ,


Mais estragados estão,


Nem sustos nem sobressaltos


Servem sequer de lição .


Quem tem medo não a sobe ,


Quem tem sonhos também não .


Há quem chegue a deitar fora


O lastro do coração .



Sobe-se numa corrida ,


Corre-se p'rigos em vão .


Adivinhaste : é a vida


A escada sem corrimão ."

terça-feira, 6 de julho de 2010

Thiago de Mello : A vida verdadeira


Fragmentos do poema


" ( ...) Pois aqui está a minha vida .

Pronta para ser usada .



Vida que não se guarda

nem se esquiva , assustada .

Vida sempre a serviço da vida .

Para servir ao que vale

a pena e o preço do amor .


Ainda que o gesto me doa ,

não encolho a mão: avanço

levando um ramo de sol .

Mesmo enrolada de pó ,

dentro da noite mais fria ,

a vida que vai comigo

é fogo :

está sempre acesa .


(...)

" Vida , casa encantada ,

onde eu moro e mora em mim ,

te quero assim verdadeira

cheirando a manga e jasmim.

Que me sejas deslumbrada

como ternura de moça

rolando sobre o capim .


Vida , toalha limpa ,

vida posta na mesa ,

vida brasa vigilante

vida pedra e espuma ,

alçapão de amapolas ,

o sol dentro do mar ,

estrume rosa do amor :

a vida .


Há que merecê-la ."


in , Faz Escuro mas eu canto

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Alice Ruiz : Se


                                     Lauri  Blank

" se por acaso

a gente se cruzasse

ia ser um caso sério

você ia rir até amanhecer

eu ia ir até acontecer

de dia um improviso

de noite uma farra

a gente ia viver

com garra


eu ia tirar de ouvido

todos os sentidos

ia ser tão divertido

tocar um solo em dueto


ia ser um riso

ia ser um gozo

ia ser todo dia

a mesma folia

até deixar de ser poesia

e virar tédio

e nem o meu melhor vestido

era remédio


daí vá ficando por aí

eu vou ficando por aqui

evitando

desviando

sempre pensando

se por acaso

a gente se cruzasse ..."


in ,
" Dois em Um "
Esta página é dedicada à querida amiga

Nédier Brusamolin Müller , curitibana e

poeta , como Alice Ruiz .

domingo, 4 de julho de 2010

Eugénio de Andrade : Poema à mãe


" No mais fundo de ti
Eu sei que te traí , mãe

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos .

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais .

Por isso , às vezes , as palavras que te digo
São duras , mãe ,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura .

Se soubesses como ainda amo as rosas ,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos .

Mas tu esqueceste muita coisa ;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram ,
Que todo o meu corpo cresceu ,
E até o meu coração
Ficou enorme , mãe !

Olha- queres ouvir-me-?
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos ;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura ;

Ainda oiço a tua voz :
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal ...

Mas- tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu .
Eu saí da moldura ,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada , mãe
Guardo a tua voz dentro de mim .
E deixo as rosas .

Boa noite . Eu vou com as aves ."

sábado, 3 de julho de 2010

Alice Ruiz : Dor Bailarina



" baila no meu peito

uma dor , anda , pula

deita , dança , baila dor ,

bailando nos lábios ,

dor bailarina

anda vem menina

dançar comigo

atrás da cortina

anda vem menina

deitar comigo

que a noite termina

anda vem comigo

ou de uma vez por todas

me elimina ."

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Caio Fernando Abreu : Carta Anônima


Pequeno trecho


(...) " Tenho trabalhado tanto ,

mas penso sempre em você .

Mais de tardezinha que de manhã ,

mais naqueles dias que parecem poeira

assentada aos poucos e com mais força enquanto

a noite avança .

Não são pensamentos escuros ,

embora noturnos .

Tão transparentes que até parecem de vidro ,

vidro tão fino que , quando penso mais forte ,

parece que vai fazer assim clack !

e quebrar em cacos ,o pensamento que penso de você .

Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre

cansado , acho que estes pensamentos quase doeriam

e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando

cacos de vidro entre os lençóis .

Brilham , na palma de minha mão .

Num deles , tem uma borboleta de asa rasgada.

Noutro , um barco confundido com a linha do horizonte ,

onde também tem uma ilha .

Não , não : acho que a ilha mora num caquinho só dela .

Noutro , um punhal de jade.

Coisas assim ,algumas ferem ,

mesmo essas que são bonitas.

Parecem filme , livro , quadro .

Não doem porque não ameaçam .

Nada que eu penso de você ameaça .

Durmo cedo , nunca quebra ."



Texto publicado no O Estado de São Paulo , 16/03/1988

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Helena Kolody : Alegria de viver



" Amo a vida .

Fascina-me o mistério de existir .


Quero viver a magia

de cada instante

embriagar-me de alegria .


Que importa a nuvem no horizonte ,

chuva de amanhã ?

Hoje o sol inunda meu dia ."