terça-feira, 13 de julho de 2010

Rubem Alves : Os moradores do albergue




Trecho da crônica

( ...)


" Fernando Pessoa era um exemplo vivo de albergue

onde moravam os mais variados personagens ,

mais de trinta ,chamados heterônimos, cada um

deles com biografia própria,filosofia distinta ,

estilo peculiar e sentimentos específicos:

Alberto Caeiro não pensa , não sente e não escreve

como Ricardo Reis , que não pensa , não sente e

não escreve como Álvaro de Campos , que não pensa ,

não sente e não escreve como Bernardo Soares -

e assim por diante .Não se trata de pseudônimos .

Pseudônimo é uma máscara que um escritor pode usar

para se esconder ou se identificar .

O caso de Fernando Pessoa era outro :

ele era literal e literariamente

" possuído " pelos heterônimos .

Sua identidade civil era definida por sua carteira

de identidade: um único indivíduo, Fernando Pessoa.

Mas nesse corpo de um nome só moravam muitos

e diferentes outros que se alternavam .

Ele chegou a confessar :

" Meu coração é um albergue ."

Tenho estado tentando fazer um inventário

das muitas entidades que podem morar no corpo .

Há moradores de todo o tipo e - o curioso é

que o corpo não faz uma investigação das

credenciais do pretendente a albergado ,

antes de aceitá-lo como morador .

Eis alguns deles : o depressivo , de

poucas palavras ; o alegrinho falador ,

insuportável; o sargento que gosta de dar

ordens ; a bruxa horrenda de voz gritada;

o torturador sádico ; o filósofo sábio ;

o místico ; o romântido apaixonado ;

o invejoso, verde; o ciumento; o mal humorado,

que acha tudo ruim ; o carrasco; o rancoroso ,

que se compraz em esgravatar o passado ;

o canalha; o moralista ; a perua ; o velho ;

a criança ... A lista não tem fim .

Com a ajuda do seu analista você poderá

fazer um inventário dos tipos que moram no

seu albergue , a fim de compreender as

confusões que acontecem no seu corpo ."

( ...)


in , Rubem Alves , " O amor que acende a lua "

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