segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Instante de beleza ...



"Ela estava com soluço . E como se não bastasse

a claridade das duas horas , ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor -

a cabeça da menina flamejava .

Sentada nos degraus de sua casa , ela suportava.

Ninguém na rua , só uma pessoa esperando

inutilmente no ponto de bonde.

E , como se não bastasse seu olhar submisso

e paciente, o soluço , a interrompia de momento a

momento ,abalando o queixo que se apoiava

conformado na mão.

Que fazer de uma menina ruiva com soluço ?

Olhamo-nos sem palavras , desalento contra desalento.

Na rua deserta nenhum sinal de bonde .

Numa terra de morenos, ser ruivo era uma

revolta involuntária.

Que importava se num dia futuro sua

marca iria fazê-la erguer insolente

uma cabeça de mulher ?

Por enquanto ela estava sentada num degrau

faiscante da porta , às duas horas.

O que a salvava era uma bolsa velha de senhora ,

com alça partida .

Segurava-a com um amor conjugal já habituado ,

apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade

neste mundo , um irmão do Grajaú.

A possibilidade de comunicação surgiu no

ângulo quente da esquina , acompanhando uma

senhora , e encarnado na figura de um cão.

Era um basset lind0 e miserável ,

doce sob a sua fatalidade .

Era um basset ruivo .

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona ,

arrastando seu comprimento.

Desprevenido , acostumado, cachorro .

A menina abriu os olhos pasmados.

Suavemente avisado , o cachorro estacou diante dela.

Sua língua vibrava .

Ambos se olhavam .

Entre tantos seres que estão prontos para se

tornarem donos de outro ser , lá estava a menina

que viera ao mundo para ter aquele cachorro .

Ele fremia suavemente , sem latir .

Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada , séria .

Quanto tempo se passava ?

Um grande soluço sacudiu-a desafinado .

Ele nem sequer tremeu.

Também ela passou por cima do soluço e

continuou a fitá-lo.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que disseram?

Não se sabe .

Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente,

pois não havia tempo.

Sabe-se também que sem falar eles se pediam.

Pediam-se , com urgência , com encabulamento ,

surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade

e de tanto sol , ali estava a solução para

a criança vermelha.

E no meio de tantas ruas a serem trotadas ,

de tantos cães maiores , de tantos esgotos secos-

lá estava uma menina ,

como se fora carne de sua ruiva carne .

Eles se fitavam profundos ,entregues ,

ausentes de Grajáu .

Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria ,

cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível ,

o centro da inocência que só se abriria

quando ela fôsse uma mulher .

Ele com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol.

O basset ruivo afinal despregou-se da menina

e saiu ssonâmbulo.

Ela ficou espantada ,

com o acontecimento nas mãos , numa mudez

que nem pai e nem mãe compreenderiam .

Acompanhou-o com os olhos pretos

que mal acreditavam , debruçada sobre a bolsa

e os joelhos , até dobrar a outra esquina .

Mas ele foi mais forte que ela .

Nem uma só vez olhou para trás ."



" Tentação " , de Clarice Lispector

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