quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

João Cabral de Melo Neto




" O amor comeu meu nome , minha identidade ,

meu retrato . O amor comeu minha certidão

de idade , minha genealogia , meu endereço.

O amor comeu meus cartões de visita .

O amor veio e comeu todos os papéis onde eu

escrevera meu nome .


O amor comeu minhas roupas , meus lenços ,

minhas camisas . O amor comeu metros e

metros de gravatas. O amor comeu a medida

dos meus ternos , o número de meus sapatos ,

o tamanho de meus chapéus .

O amor comeu minha altura , meu peso ,

a cor de meus olhos e de meus cabelos .


O amor comeu meus remédios , minhas receitas

médicas , minhas dietas . Comeu minhas aspirinas,

minhas ondas-curtas , meus raio-X .

Comeu meus testes mentais, meus exames de urina .


O amor comeu na estante todos os meus livros de

poesia . Comeu em meus livros de prosa as citações

em verso .

Comeu no dicionário as palavras que poderiam

se juntar em versos .



Faminto , o amor devorou os utensílios de meu uso:

pente, navalha , escovas , tesouras de unhas ,

canivete . Faminto ainda , o amor devorou o uso de

meus utensílios : meus banhos frios , a ópera cantada

no banheiro , o aquecedor de água de fogo morto

mas que parecia uma usina.



O amor comeu as frutas postas sobre a mesa.

Bebeu a água dos copos e das quartinhas .

Comeu o pão de propósito escondido .

Bebeu as lágrimas dos olhos que , ninguém

o sabia , estavam cheios de água .



O amor voltou para comer os papéis onde

irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome .


O amor roeu minha infância , de dedos sujos

de tinta , cabelo caindo nos olhos , botinas

nunca engraxadas .

O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos ,

e que riscava os livros , mordia o lápis , andava

na rua chutando pedras . Roeu as conversas , junto

à bomba de gazolina do largo , com os primos que

tudo sabiam sobre passarinhos , sobre uma mulher ,

sobre marcas de automóvel .



O amor comeu meu Estado e minha cidade .

Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré .

Comeu os mangues crespos e de folhas duras ,

comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo

os morros regulares , cortados pelas barreiras

vermelhas , pelo trenzinho preto , pelas chaminés.

Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia .

Comeu até essas coisas que eu desesperava por não

saber falar delas em verso .



O amor comeu até os dias ainda não anunciados

nas folhinhas .

Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio ,

os anos que as linhas de minha mão asseguravam .

Comeu o futuro atleta , o futuro grande poeta .

Comeu as futuras viagens em volta da terra ,

as futuras estantes em volta da sala .



O amor comeu minha paz e minha guerra .

Meu dia e minha noite .

Meu inverno e meu verão .

Comeu meu silêncio , minha dor de cabeça ,

meu medo da morte."


extraído da poesia " Os Três Mal-Amados "

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