domingo, 22 de abril de 2012

José Castello : O presente de um poeta



"Retratos não guardam a objetividade,
tampouco a nitidez que deles esperamos.
Estão sempre um pouco desfocados.
Conservam o recorte da perspectiva.
Dependem de uma série de fatores externos,
do acaso, do imponderável, que estão muito
além das circunstâncias técnicas.
Trazem manchas de luz, súbitas obscuridades,
deformações.
Essas ideias me vêm enquanto tento traçar
um retrato do poeta Manoel de Barros.
Aos 95 anos, depois de perder, há quatro anos,
o filho do meio, João, o poeta de Mato Grosso do Sul
agora vigia à cabeceira de seu filho mais velho,
Pedro,que sofreu um AVC.
Anda triste, esgotado, oprimido pela rudeza do real.
Quase não sai mais de casa.
Além da mulher, Stella, só se comunica regularmente
com a filha, Martha Barros, que vive no Rio, mas está
sempre em Campo Grande ao lado do pai.
"Não fala da morte", me diz Martha,
"nem gosta de falar de doença".
À morte nome algum - poema algum - corresponde
e o poeta sabe disso.
Cala-se: só o silêncio faz algum sentido,
ainda que precário, diante dela.
Ainda assim, ultrapassando seu silêncio e por meio de Martha,
experimento lhe mandar um pedido de entrevista.
Que responda à mão - Martha copiará depois suas respostas
em um e-mail. Que responda aos poucos, aos pedaços, devagar.
Explico-lhe que meu tema (o tema desta coluna de "Instantâneos")
é o presente. O que lhe peço? - eu me dou conta.
Que enfrente e fale de seu doloroso agora.
Mesmo assim, escrevo minha carta, admito,
sem grandes esperanças, mais para lhe fazer um gesto de carinho.
Mais para acariciar, ainda que com palavras,
um poeta que muito admiro.
Para minha surpresa, poucos dias depois,
e novamente por meio da bondosa Martha, recebo esta resposta:


"Campo Grande, fevereiro de 2012


Caro amigo Castello


No caminho, as crianças me enriqueceram
mais do que Sócrates.
Pois minha imaginação não tem estrada.
E eu não gosto mesmo de estrada.
Gosto de desvio e de desver.


Como dizer!
Eu vi um lagar com olhar de árvore.
Pura inocência que o absurdo faz.
Pura inocência para desver o certo.
Eu queria era mudar a feição das coisas.
Assim como desnaturar pela palavra.
Ver as coxas rosadas da Manhã na beira do rio era gosto.
A gente andava perdido nas Origens.


As palavras não tinham comportamento.
Era sempre um Tratado de Descoisas que eu queria fazer.
São alguns dos fragmentos que estou aqui mandando a você
como respostas às suas sábias perguntas.
Repito que sempre andei pelas origens sem me conhecer.
Talvez sirva esta espécie de carta para explicar
o divino absurdo e Fernando Pessoa para explicar
as raízes da inocência.
Assim: eu vi uma frondosa formiga ajoelhada no adro!


Mas não havia nem adro nem origens.
Grande abraço e obrigado por tudo.


Seu amigo


Manoel de Barros"

.....
José Castello

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