" Compreendi esta manhã que estou a deixar
para trás a juventude .
Foi depois que o meu pai telefonou , e eu
me olhei no espelho e vi o rosto de Filipa .
( ...)
Olhei-me , pois , ao espelho e ali estava minha mãe ,
de olhos bem abertos , sorrindo para mim .
Fui ao quarto dela e abri o armário .
Tudo permanecia exatamente como há cinco anos ,
antes do desastre , os vestidos alegres , os lenços
de caxemira , os chapéus magnifícos , os casaquinhos
em croché .
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A minha mãe era um ser livre .
Uma ave à solta num alto céu de verão .
Costuma dizer que os homens são como as chuvas,
imprescindíveis à vida , revigorantes , mas quando chegam ,
e em se demorando um pouco mais , logo sentimos saudades
de um dia de sol .
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Se fôsse viva Filipa faria hoje 55 anos .
Tenho saudade de minha mãe . Converso com ela
todos os dias mas não sei se me ouve .
( ...)
Filipa gostava de viajar . Viajou a vida inteira .
Nunca sabíamos onde estava . Chegava de surpresa ,
abria as malas e punha-se a tirar de lá de dentro ,
como um mágico dos abismos insondáveis da
sua cartola , toda a sorte de prodígios .
( ...)
Gosto de pensar que Filipa viajou .
Um dia voltará com as suas malas enormes ,
cheias de memórias e de maravilhas , e tomaremos
chá de menta , e comeremos torradas ,
como antigamente , enquanto ouvimos Caetano Veloso .
Tenho tanta coisa para lhe contar ."
Faíza Hayat , in " o evangelho segundo a serpente "