" Quem coleciona selos para o filho do amigo;
quem acorda de madrugada e estremece
no desgosto
de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu
a quem amava; quem
chora no cinema ao ver
o reencontro de pai e filho;
quem segura sem temor uma
lagartixa
e lhe faz com os dedos uma carícia;
quem se detém no caminho para ver
melhor
a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas;
quem decide aplicar-se
ao estudo de uma
língua morta depois de um fracasso sentimental;
quem procura na
cidade os traços da cidade que passou;
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta
fechada;
quem costura roupa para os lázaros;
quem envia bonecas às filhas dos
lázaros;
quem diz a uma visita pouco familiar:
Meu pai só gostava desta cadeira;
quem manda livros aos presidiários;
quem se comove ao ver passar de cabeça
branca
aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi
a fera do colégio; quem
escolhe na venda verdura
fresca para o canário; quem se lembra todos os dias
do
amigo morto; quem jamais negligencia os ritos
da amizade; quem guarda, se lhe
deram de presente,
o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de
beber, liga o telefone
internacional no segundo uísque a fim de conversar
com
amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas
e galhos ressequidos; quem passa
mais de dez minutos
a fazer mágicas para as crianças;
quem guarda as cartas do
noivado com uma fita;
quem sabe construir uma boa fogueira;
quem entra em
delicado transe diante dos velhos troncos,
dos musgos e dos liquens; quem
procura decifrar
no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
quem não se
acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;
quem se desata em sorriso à visão de
uma cascata ;
quem leva a sério os transatlânticos que passam;
quem visita
sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
quem de repente liberta os
pássaros do viveiro;
quem sente pena da pessoa amada e não sabe
explicar o
motivo;
quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;
todos eles são presidiários
da ternura e andarão
por toda a parte acorrentados,
atados
aos pequenos amores
da armadilha terrestre.
"
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