sábado, 16 de junho de 2012

ACORRENTADOS


    " Quem coleciona selos para o filho do amigo;
 quem acorda de madrugada e estremece no desgosto
  de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu
 a quem amava; quem chora no cinema ao ver
 o reencontro de pai e filho;
 quem segura sem temor uma lagartixa
 e lhe faz com os dedos uma carícia; 
  quem se detém no caminho para ver melhor
 a flor silvestre;  quem se ri das próprias rugas;
     quem decide aplicar-se ao estudo de uma
 língua morta  depois de um fracasso sentimental; 
 quem procura na cidade os traços da cidade que passou;
 quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada;
                     quem costura roupa para os lázaros;
  quem envia bonecas às filhas dos lázaros;
 quem diz a uma visita pouco familiar:
                     Meu pai só gostava desta cadeira;
            quem manda livros aos presidiários;
 quem se comove  ao ver passar de cabeça branca
 aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi
 a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura
 fresca para o canário;    quem se lembra todos os dias
do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos
da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente,
 o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de beber,  liga o telefone
 internacional  no segundo uísque  a fim de conversar
 com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas
 e galhos ressequidos;  quem passa mais de dez minutos
 a fazer mágicas  para as crianças;
 quem guarda as cartas do noivado com uma fita;
 quem sabe construir uma boa fogueira; 
 quem entra em  delicado transe diante dos velhos troncos,
 dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar
 no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
  quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;
    quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ;
  quem leva a sério os transatlânticos que passam;
    quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
     quem de repente liberta os pássaros do viveiro;
     quem sente pena da pessoa amada e não sabe
        explicar o motivo;
        quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;

             todos eles são presidiários da ternura e andarão
 por toda a parte acorrentados,
 atados
aos pequenos amores da armadilha terrestre. "

Paulo  Mendes  Campos


 

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