Jean Paul Nacivet
" No seu rosto algumas mulheres
mergulham desabaladamente .
Outras , mais cautelosas ,
já tendo apanhado da vida ,
chegam pisando de lado ,
aproximam-se devagar .
Começam por molhar os dedos ,
depois , com um olhar
que se quer distraído ,
dispõem-se a banhar os pés
( são estas , talvez , as que correm maior perigo -
pois ao senti-las reticentes ,
suas águas se temperam de encantos
luminosos , flutuantes , evanescentes ,
e em breve se estendem ,
em pequenas ondas graciosas ,
ao redor dos tornozelos .
Quando dão por elas - pronto !
- já estão mergulhadas até
o pescoço .)
Outras , ainda , ( as tolas ) acreditam
possuir alguma qualidade
especial que as tornará necessárias
ao mistério das suas profundezas .
Como se os seus corpos , ao se banharem naquele
líquido , estivessem , por contraste ,
oferecendo a ele alguma coisa de útil .
Pura ilusão .
Não percebem , as desavisadas ,
as pretensiosas , que , no contato íntimo
da sua água com a pele ,
ela nunca , propriamente as penetra .
Envolve , talvez .
Adula , acaricia . Aquece .
Recebe , torna macia e cheia de luz - mas nunca ,
nunca a ela se mistura .
Aos seus olhos , portanto ,
cada mulher não passa de um corpo ,
massa sólida a se deslocar de um lado para o outro ,
com maior graça ou menor grau de desconforto , mas
ainda e apenas isto : um objeto fugidio ,
que nada tira nem em nada lhe acrescenta -
um acaso do movimento que ,
meramente se dá .
Não eu .
Eu não sou como nenhuma - nem uma única
dessas tristes mulheres .
Conheço e palmilho , a cada dia ,
a completa extensão de sua orla .
Percorro , de pés descalços , sua órbita ,
tropeçando em pequenas pedras ,
cortando a pele no espinhal .
Há ocasiões que sangro profusamente ,
e é preciso que pare e me sente
para descansar em alguma pedra
da região desértica que
circunda o seu perímetro .
Nestas vezes , tenho oportunidade de observar
de perto o banho das outras mulheres :
seus movimentos aéreos e leves ;
tremeluzindo no rosto ,
a surpresa e a delícia iniciais ;
a seguir , o despontar do desconforto ,
e nas sobrancelhas franzidas ,
a breve desconfiança
da promessa de saciedade que nunca se realiza .
E , logo , ao constatarem a perda do próprio reflexo,
os músculos que se retesam ,
os esgares aterrorizantes ,
a tentativa de fuga entre grunhidos -
apenas para , no fim , o corpo ,
como um menir , ser tragado ,
inerte , para a areia escura lá no fundo .
E é por isso - por ter assistido tantas e tantas vezes
a este terrível espetáculo que reúno em mim
as forças para manter a disciplina :
por maior que seja a sede ,
por mais que me deforme
e arda no rosto esta máscara de barro ressecado
( à noite , sonho com o bálsamo do seu úmido abraço ),
em suas águas não entrarei ."
Claudia Roquette-Pinto
Som na caixa ...
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