Victor Bregeda
Escrever era algo fundamental para
Caio Fernando Abreu .
Ele dizia que se expressava melhor " por escrito" ,
por isso escreveu tantas e tão belas cartas .
Aqui , coloco alguns trechos de uma carta que ele enviou
ao amigo jornalista José Márcio Penido , em 1979 .
Nela , estimula o amigo a escrever , fala do processo
de criação e de sua admiração por Clarice Lispector .
" Porto , 22 de dezembro de 1979
Zézim ,
cheguei hoje de tardezinha da praia , fiquei lá
uns cinco dias , completamente só ( ótimo !),
e encontrei tua carta .
( ...)
Das poucas linhas da tua carta , 12 frases
terminam com ponto de interrogação .
São , portanto , perguntas .
( ...)
Você quer escrever .
Certo , mas você quer escrever ?
Ou todo mundo te cobra e você acha que tem
que escrever ?
( ...)
Isolando as cobranças você continua querendo ?
Então vai , remexe fundo , como diz um poeta
gaúcho Gabriel de Britto Velho ,
" apaga o cigarro no peito / diz pra ti
o que não gostas de ouvir /diz tudo ".
Isso é escrever .
Tira sangue com as unhas .
E não importa a forma .
Mas tem que sangrar a- bun-dan-te-men-te .
Você não está com medo desta entrega ?
Porque dó , dói , dói .
É de uma solidão assustadora .
( ...)
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector .
Ela era infelicíssima, Zézim .
A primeira vez que conversamos eu chorei
depois a noite inteira , porque ela inteirinha
me doía, porque parecia se doer também ,
de tanta compreensão sangrada de tudo .
Te falo nela porque Clarice , pra mim ,
é o que mais conheço de GRANDIOSO ,
literariamente falando .
Ela se entregou completamente ao
seu trabalho de criar .
Mergulhou na sua própria trip e foi
inventando caminhos na maior solidão .
Como Joyce . Como Kafka , louco e só
em Praga . Como Van Gogh .
Como Artaud, ou Rimbaud .
É esse tipo de criador que você quer ser ?
Então entregue-se e pague o preço
do pato . Que , frequentemente , é
muito caro .
( ...)
Zézim , remexa na memória , na infância ,
nos sonhos , no poço sem fundo do inconsciente :
é lá que esta o seu texto .
Sobretudo , não se angustie procurando-o :
ele vem até você ,
quando você e ele estiverem prontos .
Cada um tem seus processos ,
você precisa entender os seus .
( ...)
E ler , ler é alimento de quem escreve .
Várias vezes você me disse que não
conseguia mais ler .
Que não gostava mais de ler .
Senão gosta de ler ,
como vai gostar de escrever ?
Ou escreva então para destruir o texto
( ...)
Quanto a mim , te falava desses dias na praia .
Pois olha , acordava às seis , sete da manhã ,
ia pra praia , corria uns quatro quilômetros,
fazia exercícios, lá pelas dez voltava ,
ia cozinhar meu arroz . Comia , descansava
um pouco , depois sentava e escrevia .
Ficava exausto . Fiquei exausto .
Passei os dias falando sozinho , mergulhado
num texto, consegui arrancá-lo .
Era um farrapo que tinha nascido em setembro ,
em Sampa . Aí , nasceu , sem que eu planejasse .
Estava pronto na minha cabeça .
Chama-se Morangos Mofados ,
vai levar uma epígrafe de
Lennon & McCartney, tô aqui com a letra
de Strawberry fields forever pra traduzir .
Zézim , eu acho que tá tão bom .
( ...)
Quando terminei Morangos Mofados ,
escrevi em baixo , sem querer ,
"criação é coisa sagrada ."
Zézim , me dê notícias , muitas ,
e rápido .
E te cuida , por favor , te cuida bem .
Qualquer poço mais escuro ,
disque 0512-33-41-97.
Eu posso pelo menos ouvir .
Não leve a mal alguma dureza dita.
É porque te quero claro .
Citando Guilherme Arantes , pra terminar :
" Eu quero te ver com saúde /
sempre de bom humor / e de boa vontade ."
Um beijo do Caio "
in , Morangos Mofados
Som na caixa ...
VIDEO
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