quinta-feira, 26 de junho de 2014

MAR ME QUER



A escrita de Mia Couto me fascina .
A reinvenção das palavras  e  suas metáforas .
Partilho com vocês ,  pequenos  fragmentos   da novela  
  "  MAR  ME QUER "  , onde é contada 
a história de Dona Luarmina e Zeca Perpétuo .


( ...)

"Lançamos  o  barco , sonhamos a viagem :
quem viaja é sempre o mar .
(  dito de meu avô Celestiano ) 


(...)

 Sou  feliz  só  por preguiça .
A infelicidade dá uma trabalheira 
pior que doença : é preciso entrar e sair dela ,
afastar  os que nos querem consolar , 
aceitar pêsames por uma porção da alma 
que nem chegou a falecer .
(...)
Minha  vizinha reclama  não haver homem
com miolo tão miúdo como eu .
Diz que nunca viu pescador  deixar escapar
tanta maré :
- Mas  você  Zeca :
 é que não faz nem ideia  da vida .
- A vida Dona Luarmina ?
A vida é tão simples que ninguém a entende .
É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos
Deus  e não- Deus... 
Além  disso , pensar traz muita pedra 
e pouco caminho .
Por isso eu , um reformado do mar ,
 o que me resta fazer ? 
Dispensado de pescar me dispenso de pensar .
Aprendi nos muitos anos de pescaria :
o tempo anda por ondas .
A gente tem é que ficar levezinho  e sempre
apanha boleia numa destas ondeações .

 ( ...)

Hoje  sei como se mede a verdadeira idade :
vamos ficando velhos  quando não fazemos 
novos amigos . Estamos morrendo a partir
do momento que não nos apaixonamos .

( ...) 

E  até que dona Luarmina , aliás 
Albertina da Conceição Melistopolus  , 
já foi bela de espantar homenzarrada .
(...) 
 Restava-me    a  presente figura 
de Luarmina ,  gorda e engordurada .
A mulher  por  razões  de  angústia 
se deixara  acumular , quilos 
sobre  peso . Eu  entendo : 
uma boa maneira de esconder a tristeza 
é cobrirmo-nos  de carne .
O sofrimento é fatal quando atinge
os ossos .
Chegada  aí , a tristeza se apressa
em virar esqueleto .
Sábio é dar cobertura ao corpo ,
intermediar gordurosas fronteiras .
(...)  Já  faz anos que rondopio à volta
da viúva . Arrisco mesmo perder
 plumagens nesta  insistência .
A estratégia é lhe contar minhas
aventuras : invento fatos passados
em minhas atribulações marinhas .
Mas não são aventuras que a fazem sonhiscar .
O que dona Luarmina me  solicita são 
exatas  memórias .
E isto é o que eu menos quero .
(...) 
 Saudades , em mim , nunca têm  pressa .
Demoram tanto que nunca chegam .
Só quando eu danço me liberto do tempo
- esvoam as memórias , levanto voo 
de mim .
Eu devia  era dançar o tempo todo ,
dançar para ela , dançar com ela .

(...)
Insisto com dona Luarmina :, ela não me peça
lembranças . Eu quero matar o passado,
esta mulher tem que me deixar cometer este
crime .Caso  senão  é o passado que me
 mata a mim .
-Você Zeca , tem raiva do passado ,
tem ciúme do futuro , vai viver só nos agoras ?
Reformado das pescas  nem no presente
tenho cabimento .
Enquanto andava no mar ,embalado  em meu 
barco  , eu não sofria o tempo .
Porque esta ondeação  era , afinal , uma dança .
E a dança , já disse ,é a melhor maneira
de fugir do tempo .

(...) 

Luarmina  se entranhou na sua  pequena
mania , como se descosturasse um 
pano  nenhum : 
  Mar  me quer  , bem me quer ...
Este  era  o contochão de Luarmina ,
o infindo rameramejar  dela .
Todos fins de tarde , a mulata fica sentada 
num degrau da varanda  e vai desfolhando 
infinitas  flores . Ao fim de um tempo ,
todo o pátio está forrado a pétalas ,
o chão espantado a mil cores ."



Som   na  caixa ...





sexta-feira, 20 de junho de 2014

RÁPIDO E RASTEIRO

Photo .net

"  vai ter uma festa 
que eu vou dançar
até o sapato pedir para parar .

aí  eu paro 
tiro o sapato
e danço o resto da vida ."

Chacal ,
( Ricardo   de Carvalho Duarte )
poeta , cronista e produtor cultural
carioca , nascido em 1951

Som  na  caixa ...


sexta-feira, 13 de junho de 2014

AVESSO

Lauri  Blank
 
" Pode parecer promessa
mas  eu  sinto  que   você é a pessoa
mais  parecida  comigo
que  eu  conheço
só que do lado do avesso .
 
Pode  ser  que  seja  engano
bobagem ou ilusão
de ter você  na  minha ,
mas  acho que com você eu me esqueço
e em seguida eu aconteço .
 
Por isso  deixo  aqui  meu  endereço
se você  me  procurar
eu apareço ,
se  você  me  encontrar
te  reconheço ."
 
Alice  Ruiz ,
poeta e tradutora ,
 nascida em Curitiba ,
 aos  22/01/1946
 
Som  na  caixa ...
 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

CUIDADO COM PESSOAS COMO EU

Alberto  Seveso

É  o segundo romance de Eduardo Basczczyn ,
escritor e jornalista ,
 nascido em São Paulo ,em 1976.

Abrir ou não a porta ?
É  a questão colocada pelo autor .
Luísa  foi abandonada pelo namorado  
e se surpreende ,  quando , depois de
certo tempo , ele volta ao apartamento 
dela em busca de coisas que ainda restavam lá .
Começa bater à porta e ela se recusa a abri-la .
Aí , inicia-se  o monólogo
 catártico e ininterrupto dela.
Gosto da forma intensa e lírica do
autor conduzir  a história.
Por isto , partilho com vocês alguns fragmentos .

"  se eu não preciso mais nem do que 
está dentro de mim , como você pode
vir bater nesta porta atrás  de restos ?
De pequenos objetos , sem importância ,
deixados para trás . Como pode atravessar
a cidade toda para vir buscar  esse
seu tão pouco que sobrou ?
Porque eu não tive tempo . Está me ouvindo ?
Eu ainda não tive tempo de arrumar 
as suas coisas .
(...)  Acho melhor você parar  de 
bater na porta desse jeito .
Nesse mesmo ritmo .
Com esse mesmo intervalo entre 
as batidas , como se tivesse ensaiado
antes . Eu não vou abrir . Está ouvindo ?
Hoje  serei a desobediente .
A menina que, depois  do não , 
escreve a mesma frase  na lousa  centenas
de vezes  até  o final do giz .
(...)  Há anos coleciono castigos .
E hoje novamente desobedeço .
Não abro esta porta apesar  da vontade
de ver  a sua cara  de decepção  do 
outro lado . Eu não estou morta como
você gostaria .
 Eu ainda  não estou morta .
(...) Não completamente .
Porque olha :  as janelas estão abertas .
O sol  tem entrado quase todas as manhãs,
teimoso , se contorcendo , entre os vãos dos
prédios da frente . Passando pelos mínimos
espaços  que encontra  entre tantos obstáculos 
até aqui . É preciso abrir as janelas , não é ?
É preciso  deixar que pelo menos um filete 
de sol  passeie  pelo apartamento todos os dias .
É preciso  de pelo menos um raio milimétrico 
de luz  para que a planta não morra .
Mais  do que encharcar  a terra com água ,
é preciso  abrir as  janelas , eu sei .
( ...)
  Eu sei que poderia desvirar a chave e 
abrir poucos centímetros desta porta .
Que poderia  olhar  sua cara pelo espaço e 
falar tudo para os seus olhos ,
mas são os pequenos vãos que permitem a 
entrada de insetos silenciosos 
no meio da madrugada .
E você invadiria o apartamento  como um deles.
( ...)
Eu   não mexi em nada ainda .
Apenas  nas fotos .
Já disse que troquei as fotos ?
Todas . Porque não aguentava mais 
seus sorrisos pelos cantos .
Seus olhos pregados nas paredes observando
meus dias . Suas miniaturas vivendo em
cima dos móveis . Ao lado da cama .
Sobre o velho piano , como se nada 
tivesse acontecido .
Como se a última noite não tivesse existido .
Você  , em todos os lugares do apartamento.
Em todos os momentos . 
Olhando os meus sonos .
Ouvindo as minhas conversas .
Acordado , me fazendo companhia 
nas insônias  sem que eu pedisse .
Sem que eu quisesse.
Pares de olhos arregalados pela casa ,
brotando por todos os lados .
Espiando, do corredor , meus banhos
de porta aberta . Minhas saídas e minhas
voltas . Meus choros . Minhas febres .
Escutando minhas orações .
Aplaudindo minhas danças  no 
meio da sala .
Cantarolando  com meus assobios
desafinados.
Descobrindo os segredos 
que carrego nos bolsos .
Fantasma controlando os meus horários .
Por isto eu troquei as fotos . Todas .
Por coisas da infância , já disse ?
  No seu lugar  agora , um outro passado .
Mais distante . Em vez dos seus olhos ,
os de uma menina descolorida pelo tempo .
Amarelada .
(...)
Você  chegou a ver esta foto ?
Eu : pano branco e vagabundo ,
vela em uma das mãos ,
 as  asas presas nas costas :
 um anjo .
(...)
Tirei  você de cima do piano , transformando
seu rosto e seu sorriso em pedaços  atirados
no lixo , e coloquei essa foto .
Eu , um anjo .
( ...)

Tola . Ingênua . Desavisada .
Sem saber que , em uma noite qualquer ,
você, deixaria o passado , atravessaria 
a cidade infernal  e retornaria 
como se tivesse  colado 
as partes picadas . Como se tivesse 
saltado de uma das fotografias remendadas .
Grudadas , Refeitas . 
Como é que a gente rasga o que tem 
na memória ?
Por que  não me ajuda ?
Por que não me responde ?
Por que não afasta as suas mãos desgraçadas 
da porta , por um momento, e me
diz ? 
Como é que a gente rasga o  que tem na memória ?  
( ...)
De repente , você e seu retorno egoísta 
provando que estou apenas substituindo
fantasmas . Que é perda de tempo trocar 
suas fotografias pelas da menina do passado .
Pela criança descolorida  pelos anos .
Amarelada. Pela menina desbotando aos 
poucos  todos  os dias .
De repente,você de volta  me mostrando
que os ferros duros vão permanecer para
sempre no mesmo lugar .
Machucando as minhas costas .
Só a dor traz o crescimento , eu sei .
Como é que a gente rasga o que tem na memória ?"

Eduardo Baszczyn


Som  na  caixa ...