domingo, 22 de março de 2015

ONÍRICO

Josephine  Wall

Escrito em 1991 , por Caio Fernando Abreu , este conto ,
 pretendia ser  uma reescritura  de 
" A pequena sereia " de Andersen .
A jovem de " Onírico " encontra com seu amado  em sonho , 
e passa , evidentemente sem sucesso , a procurá-lo nas ruas .
Partilho com vocês alguns trechos .

" Viu  os frutos do pomar amadurecerem e serem
colhidos , viu a neve derreter-se  nas montanhas .
Mas  nunca  mais viu o  príncipe ."

Andersen  , " A pequena  sereia " 

" Veio num sonho , certa  noite . 
Ela  o  amava . Ele  a  amava  também .
E  ainda  que  essa  coisa , o amor , fosse
complicada  demais para  compreender e detalhar 
nas  maneiras  tortuosas  como acontece ,
naquele momento em que acontecia  dentro do sonho ,
era  simples . Boa , fácil , assim  era.
Ela  gostava  de  estar  com ele ,
ele gostava  de estar  com ela .  Isso  era  tudo .
Dormiam  juntos , no sonho , porque  era bom 
para  um  e  para  o outro  estarem  assim  juntos ,
naquele  outro espaço .

(...)

Deitada  no  ombro dele , ela via seu rosto 
muito próximo . Esse  era  o  sonho , nada  mais .
E  isso , mais tarde  saberia , era  o  único fato 
do sonho  inteiro : via o rosto dele muito próximo .

(...)

Talvez ele tivesse passado um dos braços em 
torno da cintura  dela , quem sabe ela houvesse
deitado uma das mãos sobre o ombro dele ,
erguendo os dedos até que tocassem no 
lóbulo de sua orelha .
Em todos os dias que se seguiram à noite daquele
sonho , e foram muitos , honestamente não 
saberia  localizar outros detalhes .

(...)

Sem  artifícios , acordou na manhã seguinte .
Vazias , ela e a manhã . E procurou o telefone 
para  contar  às  amigas . " Premonição " , 
disse uma , " você  vai encontrar  alguém "; 
" transporte  astral " , disse  outra ,
"você  deve  tê-lo  realmente encontrado numa
outra dimensão "; " ah , mera projeção  de carências 
atávicas " , disse  mais  uma , " no fundo pura
falta de sexo " .

(...)

Nos  dias  seguintes , mesmo aceitando todos
os jantares e cedendo a todos os cinemas 
e shoppings e pizzarias , pois ele poderia estar
também no real - ele também não estava lá .
Nem aqui .  Em nenhum lugar que fosse , 
de fora ou de dentro , nos dias seguintes ao dia
 em que estivera deitada no ombro dele  tão
proximamente nu também , no fundo de um
sonho , conseguia reencontrá-lo .

( ...)

Passaram-se  meses , ela não o esquecia .
Toda  noite , acompanhada ou não -
pois ao fim e ao cabo achava , digamos ,
saudável manter uma vida real-objetiva 
enquanto ele continuava a acontecer dentro
de si , noutro espaço .

( ...)

Então  voltava a deitar em horas absurdas 
e a dormir para tentar encontrá-lo  no país 
onde habitava , e nem sabia que reino mais ,
tão diverso do dela .
Todas  as  noites , um segundo antes de afundar ,
pensava - onde quer que você esteja , meu príncipe ,
em qualquer região da minha mente , no mínimo 
interstício , na fímbria do pensamento , frincha da 
memória , dobra da fantasia , faixa vibratória 
passada  presente  futura , aqui vou eu ao seu encontro,
meu bem amado . E nada . Mesmo que alimentasse
o hábito de materializar anjos e fadas sentados 
à beira  de sua cama , a perguntarem gentis 
o que desejava mais profunda e loucamente  entre
todas as coisas da vida inteira , o que mais queria 
de tudo que existe  no universo infinito -,
 nunca mais voltou  a vê-lo .
Nem  no  sonho . Nem na vida .

(...)

Talvez  se  morresse .
 O problema  é que a vida era agora e aqui .
E além de não  estar nem no aqui 
nem no agora , ele não partia .
Não  se matou . Não seria capaz , resistia
sempre  a ilusão de encontrá-lo  um dia .
Por isso houve  outros , claro .
Algumas  iluminações , encontros  quase agradáveis .  
Mas  aprendeu a ir dormir sempre o mais cedo
que pode , pois é nessa faixa que ele habita , ela sabe
a contemplá-la mesmo de olhos fechados .
E de tudo que foi restando nestes anos todos ,
continua sabendo que sabe que fica lá o lugar 
onde  poderia encontrá-lo  outra  vez .

( ...)
Arfam levemente os dois .
 Ela dorme segura protegida  no ombro dele
que a protege seguro . Mesmo dormindo ,
mesmo do lado de cá . E  isso é para sempre ,
por mais que o tempo passe e a afaste cada vez
mais dele , que continua eterno naquele segundo
que o viu .
E isso ninguém roubará , repete-se ,
 mesmo levando em conta todos aqueles meses 
de enganos vis que continuam e continuarão a vir
depois daquele sonho .
Eu  te  amo , repete sozinha  para o escuro 
da noite , pouco antes de seu corpo dissolver-se 
na espuma do sono , eu te amo .
E se pudessem saber , os  outros , 
todos saberiam que isso não deixa de ser 
uma vitória . Certa espécie de vitória .
Mas tão dúbia que parece também
 uma completa  derrota ."

Caio Fernando Abreu 
in , " O essencial da década de 1990 "

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terça-feira, 17 de março de 2015

ELIS REGINA


Se  viva estivesse ,   Elis Regina ,
 uma das  melhores cantoras brasileiras , 
 hoje completaria  70 anos .
Em sua homenagem  ,  duas  belas interpretações .

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quarta-feira, 11 de março de 2015

CANÇÃO NA PLENITUDE

Ron Coulter


" Não tenho mais olhos de menina  nem corpo
adolescente , e a pele translúcida  há muito 
se manchou .
Há  rugas  onde havia sedas , sou uma estrutura
agrandada  pelos anos e o peso dos fardos
bons  ou ruins .
( Carreguei muitos com gosto  e alguns
com rebeldia )


O que te posso dar  é  mais que tudo 
o que perdi : dou-te  os  meus ganhos .
A maturidade  que  consegue  rir 
quando em outros tempos choraria ,
busca  te agradar quando antigamente 
quereria  apenas  ser  amada .
Posso  dar-te  muito mais  do que 
a beleza e juventude agora : 
esses  dourados  anos  me  ensinaram
a amar  melhor , com  mais paciência 
e não  menos  ardor , a entender-te
se  precisas , a  aguardar-te quando vais ,
a  dar-te  regaço  de amante e colo de amiga ,
e  sobretudo  força - que vem do aprendizado .
Isso  posso te  dar : um  mar  antigo  e confiável 
cujas  marés - mesmo se fogem - retornam ,
cujas  correntes  ocultas  não levam destroços 
mas  o  sonho  interminável  das  sereias ."

Lya  Luft   ,
in  "  Secreta  Mirada  e outros  poemas "


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quarta-feira, 4 de março de 2015

TEMPO

imagem    da  net 


" Se corre devagar  o tempo , e o tempo 
não corre , em que relógio contarei
os segundos que se demoram quando as 
horas  se  precipitam ou o amanhã 

que nunca mais chega neste hoje 
que já passou ?  Mas  o tempo  só  o  é 
quando o perdemos ; e ao ver que 
 é tarde  ,  não se volta atrás  , nem 

as  voltas  que o tempo dá  o voltam
a fazer  andar . Por  isso é que o tempo 
nos  dá  tempo  para  o  ter , se  ainda 

houver  tempo ; e se  tivermos  de o perder ,
nenhum  tempo  contará  o tempo que se
 gastou para  saber  o que se perdeu , ou ganhou ."

Nuno Júdice 

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