Mark Keller
" E escrevi o teu nome e o teu número de telefone
numa página da agenda de Fevereiro .
E , ao escrevê-lo , sabia que era uma despedida ,
mas todo o mês de Março nos arrastamos na
despedida , como caranguejos na maré vazia .
Sem ti , lancei outras raízes , construí pátios e
terraços , fontes cujo som deveria apagar todos
os silêncios , plantei um pomar com cheiro a damasco ,
mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore
para olhar as estrelas do céu , um caminho no meio
do olival por onde o luar pousaria à noite ,
abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio
dos arquitetos e até teias de aranha suspensas
do teto , como se vigiassem a passagem do tempo .
Nada disso tu viste , nada te contei , nada é teu .
Sozinhos , eu e a aranha pendurada na sua teia ,
contemplamo-nos longamente ,
como quem se descobre ,
como quem se recolhe ,
como quem se esconde .
Foi assim que vi desfilar os anos ,
as paredes escurecendo ,
um pó de tijolo pousando entre as páginas
dos mesmos livros que fui lendo , repetidamente .
( ... )
E arranquei a página da agenda com o teu
nome e o teu número de telefone .
Veio a seguir Abril e depois o Verão .
Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias
adormecidas , vi rebentar o azul dos jacarandás
em Junho , vi noites de lua cheia em que todos
os animais noturnos se chamavam rãs ,
corujas e grilos , e um espesso calor sobre
a devassidão da cidade .
E já nada disto , juro , era teu .
E foi assim que descobri que todas as
coisas continuam para sempre ,
como um rio que corre ininterruptamente
para o mar , por mais que façam para o deter .
( ...)
E a tua voz ouço-a agora , vinda de longe ,
como o som do mar imaginado dentro
de um búzio . Vejo-te através da espuma
quebrada na areia das praias , num mar
de Setembro , com cheiro a algas e a iodo .
E de novo acredito que nada do que é
importante se perde verdadeiramente .
Apenas nos iludimos , julgando ser donos
das coisas , dos instantes e dos outros .
Comigo caminham todos os mortos que amei ,
todos os amigos que se afastaram ,
todos os dias felizes que se apagaram .
Não perdi nada , apenas a ilusão de que
tudo podia ser meu para sempre . "
Miguel Souza Tavares ,
no texto , " Eternamente " ,
contido no livro
" Não te deixarei morrer, David Crockett "
Som na Caixa ...